quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

A Visita

Ana era uma menina inteligente, que deixou sua cidade ainda bem jovem para estudar numa cidade maior. Uma universitária tímida e dedicada como tantas outras, que gosta e sente muitas saudades de sua família, tem poucos, mas bons amigos, mas também valoriza bastante os momentos que passa sozinha com suas músicas, livros e pensamentos.

Depois de cinco anos fora, Ana estava de volta mais uma vez à sua cidade natal para uma visita. Mas desta vez sua família não sabia que ela estava na cidade, na verdade ninguém sabia, e ela preferia que continuassem sem saber. Ana normalmente costumava vir para o Natal, às vezes na Páscoa também, mas esta não era uma data particularmente especial.

Quando chegou já era final de tarde, e ela não se dirigiu à casa de nenhum amigo ou parente, mas ao cemitério da cidade. Andou entre as sepulturas, tentando não ser vista pelo vigia ou coveiro, pois já era tarde e o horário de visitas tinha terminado. Não demorou muito para encontrar o que procurava: uma cova simples, um tanto quanto recente, sem qualquer adorno de mármore, granito ou porcelana, apenas uma cruz rústica de madeira fincada na terra, suja de limo e com inscrições meio apagadas. Nela podia ser lido um nome, Daniel, e as datas de seu nascimento e morte (esta última remetia à apenas dois meses atrás). Parou por um tempo, apenas observando as letras e números borrados como se aquilo fosse uma fotografia que lembrasse um passado distante. Mesmo assim não parecia realmente emotiva.

As cenas que se seguiram podem ser descritas como uma tormenta vinda logo após a calmaria: Ana repentinamente mudou sua expressão, mostrando um sorriso sádico e odioso, e num impulso destrutivo arrancou a cruz de madeira e fez o que pôde para quebrá-la ao meio. Em seguida forçando a vista (pois o sol já terminava de se pôr) olhou ao redor até encontrar uma pá encostada em um dos túmulos, se atirando em sua direção rapidamente. E com uma força e ferocidade que não combinavam com sua aparência frágil ela começou a cavar o túmulo, sem parecer sequer sentir os arranhões que sofria e a terra úmida que sujava toda a sua roupa e entrava em seus sapatos.

Depois de muito esforço sentiu uma batida oca na madeira da tampa, e nesse momento sua expressão se tornou séria. Por um momento pareceu se dar conta de seu ato terrivelmente insano. Parecia assustada, talvez pelo risco eminente de ser pega, ou então por imaginar o que a esperava embaixo da tampa daquele caixão.

Hesitou por um momento e parecia tentar convencer a si mesma de continuar. Alguns minutos se passaram antes que retirasse o restante da terra que cobria o caixão, então respirou fundo. Sentia pela primeira vez o cansaço e ouvia seu coração batendo forte e ecoando em seus tímpanos, enquanto uma lágrima solitária parecia escorrer sobre seu rosto (ou talvez fosse apenas uma gota de suor). Suas mãos doeram e sangraram ao remover os parafusos que prendiam a tampa no lugar, e outra lágrima escorreu. O sol já havia sumido há algum tempo no horizonte e tudo o que restava era uma luz cinzenta e dispersa.

Ao mover a tampa foi interrompida pela tontura e náusea causadas pelo cheiro de morte que emergiu instantaneamente e quase caiu de costas. Precisou cobrir o nariz e a boca com um lenço antes de continuar.

Ao ver a figura que ali jazia, sua primeira sensação foi de terror, pânico, seguido de repulsa e mais náusea. Nesse momento o odor tomava conta de todo o ar à sua volta, mas sua atenção parecia se voltar totalmente àquela visão nefasta do corpo apodrecido.

A pele havia escurecido, se tornado algo entre cinza e púrpura. Algumas partes estavam rompidas, e através dos buracos escorria a massa disforme dos órgãos liquefeitos. Milhares de vermes brancos o cobriam dos pés à cabeça, se arrastando, entrando e saindo pelas fissuras e por todas as cavidades. Ao ver os vermes se movendo, Ana sentiu um pavor irracional e então vomitou. Tremeu, se sentiu fraca. Então lembrou-se porque estava ali. Olhou para as fossas vazias dos olhos e, por um momento, pareceu reconhecer naquela face desfigurada os traços de quem ela procurava.


Ela mesma gostaria de ter feito aquilo. Estava planejando tudo há algum tempo, com todos os detalhes. Seria um crime perfeito. Iria atraí-lo, sem que ninguém soubesse. Tinha um plano para capturá-lo na calada da noite, torturá-lo, fazê-lo pagar pelo que lhe fez, por anos de sofrimento e uma vida miserável, da qual ela teve de fugir. Iria matá-lo lentamente. Depois teria que se livrar do cadáver, mas também já sabia como fazê-lo, não seria difícil – talvez fosse até divertido. Mas a morte chegou para ele antes que ela pudesse realizar seus planos e lhe tirou o doce prazer de uma vingança tão esperada.




Num surto de loucura, com ódio no olhar, ela afundou um dos pés no crânio do cadáver, destruindo sua frágil cobertura óssea com a facilidade com que se quebra a casca de um ovo. Para alcançá-lo, porém, teve que dar um passo à frente, e em seguida se desequilibrou, enfiando o outro pé por entre as entranhas e vermes, o sapato ficando agarrado ao que restava das costelas.

Percebeu que havia prendido os dois pés e, ao tentar soltar o pé direito, que ficou enroscado no crânio despedaçado, caiu sentada sobre o abdômen, que terminou de se desmanchar sob suas calças. Sentiu seu corpo em contato com todas aquelas substâncias repulsivas, pegajosas como uma calda de sorvete, e vomitou pela segunda vez.

Já era quase noite e ela enxergava com dificuldade enquanto tentava se levantar, apoiando-se nas paredes da cova. Depois de direcionar ao morto todas as injúrias de que podia se lembrar, ignorando toda a sua situação miserável, quebrou-lhe os poucos ossos que restavam inteiros. Finalmente parecia satisfeita de alguma forma, então encaminhou-se para fora do túmulo.

Ao sair, porém, deu de frente com o que parecia ser o vigia do lugar, que esperava por ela. Mas antes que pudesse começar a se explicar sentiu uma batida forte e uma dor terrível por trás da cabeça, e caiu de volta no buraco, dessa vez de frente, com o rosto no peito do cadáver.

- Porque fez isso? Achei que íamos brincar com ela um pouco primeiro... – disse o vigia.

- Tá maluco? – respondeu o coveiro, segurando sua pá ensanguentada – Não sei o que ela andou fazendo aqui, mas do jeito que ela estava você não ia querer chegar nem perto dessa aí...

- Mesmo assim foi divertido... Já fazia um bom tempo desde a última vez que fizemos isso, e essa aqui deu muito mole... – completou o vigia.

Enquanto recobrava aos poucos a consciência, ela sentiu a tampa do caixão sendo jogada em suas costas. Tentou dar um último grito, que saiu abafado pela terra que estava sendo jogada sobre ela e já cobria sua boca.





Antes da separação ele havia dito que os dois terminariam juntos de algum jeito, quisesse ela ou não.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Meu Poema de Sete Faces


















Quando nasci veio um demoniozinho, desses que não tem nada melhor pra fazer
e assoprou no meu ouvido: "Esquece que isso aqui não é pra você não..."

À noite todos saem à procura

Não é tão difícil entender
Mais difícil é achar o meu lugar na matilha
E levar toda essa alegria pro travesseiro

Tantas são as coxas, e ombros, e pescoços, e cabelos
Que se jogam de um lado pro outro 
Que pergunto ao meu ID o porquê de tudo isso
E logo ele me responde:
"Não interessa, continue olhando!"

Atrás desses óculos tem uma menina
Que não é uma mulher, e tem medo de ser um dia
Se sente só, mas não procura companhia
Então escreve uns versos sem rima nenhuma

Deus, eu te pediria muita coisa
Mas depois que te mataram
Não posso pedir mais nada

Mundo, mundo, vasto mundo
Se eu me chamasse Raimundo...
Talvez as coisas fossem mais fáceis (ou talvez não)
Não que isso seja uma opção

Você não devia me dar ouvidos agora...
Esse céu, esse vinho, essa música velha...
Mostram um lado nosso que as pessoas não querem conhecer.





Drummond! <3


quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Sorriso


















Não quero uma foto sua
Não quero seu sorriso congelado numa imagem sem vida
Sem saber porque está rindo, ou se o riso é sincero...

Quero ver seu sorriso se abrindo no seu rosto
Sua face se enrugando enquanto os lábios se abrem numa meia-lua
E seus olhos se fecham, arqueando suas sobrancelhas

E enquanto os olhinhos negros se apertam e diminuem
Poder enxergar eles brilharem, escondidos por entre as pálpebras

E saber que está sorrindo pra mim

Susurros numa tarde quente


Tarde quente, sonho lúcido
Uma brisa morna no ar
O sol atravessando a cortina
O quarto todo amarelo
O corpo quente, dormente, entregue
Um sonho te trouxe pra perto
Senti por um instante o perfume dos cabelos
Abri os olhos e não pude me mover
A paralisia, o medo
Então despertei no calor inebriante
Abraçada pela luz furtiva do final de tarde
Vi uma nuvem cor-de-rosa no horizonte